Chegou ao fim a passagem de Seedorf pelo futebol brasileiro e pelo Botafogo. O craque abriu mão dos últimos seis meses de contrato que restavam no clube e da chance de disputar a Libertadores, o que seria seu primeiro torneio internacional na América do Sul, para se aposentar aos 37 anos e dar início à carreira de treinador no Milan, da Itália. Alvo antigo do clube milanês, a investida sobre o holandês aumentou com a demissão do técnico Massimiliano Allegri, que não resistiu à vexatória derrota para o modesto Sassuolo, pelo Campeonato Italiano, no último domingo. O convite pesou, e craque, sorridente e tranquilo, anunciou sua despedida em entrevista coletiva nesta segunda-feira, no Engenhão.
– Vou parar de jogar futebol depois de 22 anos. Foi uma noite difícil, mas estou satisfeito com o que fiz na minha carreira, no que fiz com o Botafogo. Objetivo de voltar a sonhar, a entrar na Libertadores após 17 anos. Minha felicidade de poder ter deixado também em campo resultados importantes. Carioca foi um começo. Não acabou mal. Conseguimos a vaga na Libertadores que o clube merece, o grupo que estou deixando aqui merece. Gostaria de agradecer a todos. Agradeço o projeto do Botafogo e desejo o melhor. Que possa manter a autoestima, melhorar e manter o que a gente construiu. Muitos times poderiam ser melhores tecnicamente que o Botafogo, mas por causa da nossa cabeça fizemos melhor. Vou seguir o Botafogo à distância. Obrigado por essa convivência, muitas coisas positivas, agradeço ao Rio, ao Brasil, a todos vocês que estão aqui e aos que não estão. Me abraçaram daquela forma. Estou feliz e satisfeito, não tenho arrependimento. Posso me aposentar tranquilo. Poderia jogar muito mais, treinar mais. Ver a garotada treinando me motivava. O Brasil, que me abraçou, não vou esquecer nunca mais, acho que dei algo importante, que fiz isso e por isso estou tranquilo para fechar – declarou.
Seedorf ainda vai de helicóptero a Saquarema nesta tarde para abraçar os jogadores que estão realizando a pré-temporada. O craque, porém, disse que o anúncio não se trata de um adeus. Ele deixa em aberto a possibilidade de reencontrar um dia não só o Botafogo, como o Brasil. E antes e partir rumo à Itália, o holandês desejou sorte à Seleção na Copa do Mundo daqui a cinco meses.
– Não é um adeus, vamos nos encontrar ainda. Essa experiência nesse um ano e meio me fez crescer muito e me ajudará no meu próximo passo, que será como treinador do Milan. Queria fechar de maneira elegante e correta. Muito obrigado de novo a todos. Espero que o Brasil possa ter uma Copa inesquecível e que a seleção brasileira possa honrar as cores. Obrigado.
O presidente alvinegro, Mauricio Assumpção, admitiu a perda de qualidade técnica que o time terá sem o Seedorf e tratou de dizer que encontrar um substituto será um desafio. Mas o comandante aposta no legado do próprio holandês não só para atrair jogadores, como para evoluir as categorias de base do clube.
– Vai ser difícil (achar um substituto). É um desafio que temos aqui. Achar alguém que traga tudo o que ele trouxe. Algumas contratações estão sendo feitas. A vinda dele e a saída dele vão abrir as portas de um Botafogo para muito jogador do quilate dele, embora seja difícil achar. O Botafogo se credencia como um clube que tem condições de receber alguém assim, fica fácil para o mercado internacional entender. Meu sócio-torcedor pulou mais de 100%, isso é representativo. Mas tenho de falar da chancela que ele deu à base. Vi gerações surgirem e desaparecerem sem chancela. O Botafogo pôde subir garotos com o Seedorf, convivendo com ele no dia a dia. Esse é o ganho maior de todos. Não é a toa que hoje temos mais de 16 atletas da base no elenco. Essa foi a maior contribuição e vai se perpetuar a outras gerações. O que é bem feito não é perdido – defendeu.
Bem-humorado e transmitindo segurança ao ter tomado a decisão de antecipar a aposentadoria para assumir o comando do Milan, Seedorf lembrou a partida contra o Criciúma, pela última rodada do Brasileirão, como o momento mais emocionante de sua trajetória pelo Botafogo. E deixou claro estar certo de que ao migrar de uma sólida carreira nos gramados para outra ainda incerta à beira dele, está certo de que deu um passo firme em direção ao futuro.
– Gosto de trabalhar, de estar nesse mundo do futebol, e acho que vou continuar ajudando na minha missão de vida, que é ajudar a fazer um mundo melhor, não mais como ator no campo, mas treinando esses atores, que são modelos para as crianças. É um passo natural. Um taça a mais ou a menos não vai mudar minha história. O legado deixado é o importante para mim. Isso foi fantástico, bonito e feliz por tudo que fiz. Ninguém sabe qual é o momento certo. Tem que ter coragem pra seguir o coração. A cabeça pode tomar decisões erradas, mas o coração dificilmente erra.
Do anúncio da contratação até a confirmação do fim da trajetória de Seedorf no Botafogo foram 564 dias, 81 jogos e 24 gols. O camisa 10 ajudou o clube na conquista do Carioca de 2013, quando foi eleito o melhor jogador da competição, e na conquista da vaga para a Libertadores de 2014 após 17 anos longe do torneio. A chegada foi apoteótica, no aeroporto lotado. A apresentação, no Engenhão, também emocionou os torcedores. A chegada do ídolo, além da qualidade técnica, serviu para elevar a autoestima dos alvinegros.
Como em todo casamento, na relação de Seedorf com o Bota houve momentos de turbulência. O camisa 10 ficou bastante chateado com ao episódio em que torcedores foram ao aeroporto hostilizar os atletas e atirar ovos no ônibus após uma derrota para o Internacional. Outra coisa que incomodava o holandês eram os contantes atrasos de salários do elenco. O perfil participativo e as cobranças durante treinos e jogos por vezes criaram algumas rusgas, por exemplo, com Dória, Gilberto, Jefferson e Antônio Carlos.
Diante da má receptividade, ele ficou mais calado. O grupo percebeu e pediu a volta do “pai chato”, já que consideravam que o meia conseguia fazer com que os companheiros produzissem mais. No início deste ano, a notícia de que Oswaldo de Oliveira não renovaria contrato também desapontou Seedorf, que sempre disse ter uma relação especial com o comandante.
Um craque emotivo e com talento musical
Neste um ano e meio no Brasil, Seedorf mostrou um lado bastante emotivo e chorou algumas vezes. A primeira vez, no entanto, não foi de alegria. Em uma partida do Brasileiro de 2012, contra o Atlético-GO, no Engenhão, vencida por 4 a 0 pelo Botafogo. O holandês fez um dos gols, mas machucou a coxa ainda no primeiro tempo e deixou o gramado lentamente, com lágrimas nos olhos, enquanto era aplaudido pela torcida alvinegra.
O segundo choro do holandês foi um somatório de emoções. Ele fez três gols (pela primeira vez na carreira) na vitória sobre o Macaé e ainda tinha recente em sua memória a lembrança da perda de sua avó, que havia morrido dias antes no Suriname. Talvez o choro mais inesquecível para os botafoguenses foi o do dia da conquista do Carioca. Seedorf, o mesmo que já ganhou quatro vezes a Liga dos Campeões, derramou lágrimas para celebrar mais um triunfo na carreira.
Na última partida que fez pelo Bota, na vitória sobre o Criciúma, no Maracanã, como se já imaginasse que não vestiria mais a camisa alvinegra, ele também se emocionou bastante ao ser aplaudido pela torcida. Na saída de campo, disse que estava com o sentimento de dever cumprido.
A música também foi parte importante na vida de Seedorf no Brasil. O craque conseguiu influenciar o vestiário do Bota com seu gosto musical, especialmente pelo reggae. Foi a canção “One Love” do cantor jamaicano Bob Marley que se tornou símbolo da conquista do Carioca. Na comemoração do título, na sede lotada de General Severiano, o craque soltou a voz e foi acompanhado pelos torcedores.
O Rio de Janeiro perde um “quase carioca”. Frequentador da cidade mesmo antes de se transferir para o Botafogo, até porque é casado com a brasileira Luviana, o holandês adorava pegar sua bicicleta e dar uma volta pela orla. Colocava um boné, fone nos ouvidos e seguia sem quase ser incomodado nas ruas.
Fonte: G1