de Superinteressante
Já pensou se, cada vez que fosse assinar o nome, você tivesse de recordar as primeiras letras, aprendidas na infância? Pois é exatamente isso que acontece, embora não se perceba: escrever é como pressionar no cérebro a mesma tecla da cartilha do curso primário, desenhar novamente as palavras do jeito que a professora ensinou. A rigor, fazer qualquer coisa—qualquer coisa mesmo—é voltar inconscientemente à primeira experiência de aprendizado. A memória está presente em tudo. Graças a ela somos capazes não só de fazer algo como também de relacionar as coisas entre si, de estabelecer toda sorte de associações, sem as quais a própria sobrevivência seria impossível. Todos nós, enfim, vivemos de recordações.
O dia de sol evoca a praia, o céu cinzento adverte que pode chover, a música reanima um antigo sentimento. Dito desse modo, é como se os responsáveis pelas lembranças—ou pelas memorizações — sempre estivessem fora da pessoa, no sol, no céu, no som, por exemplo. Faz sentido: a memória é uma interação entre o ambiente e o organismo. Essa interação altera o sistema nervoso de tal modo que lhe permite reviver uma experiência. Naturalmente, todos os sentidos—tato, paladar, olfato, audição e visão—são instrumentos da memória. Mas a sede das lembranças é uma massa gelatinosa, com cerca de 1 quilo e meio que mal se acomodaria na palma da mão. Ou seja, o cérebro.
Comparáveis ao número de estreIas na Via Láctea, existem no cérebro 100 bilhões de neurônios, acinzentadas células nervosas com centésimos de milímetro de diâmetro, que possuem prolongamentos, chamados axônios.
Aparentemente, o cérebro é revestido por uma camada cinza, o córtex, que deve sua cor ao fato de ser formado quase só por corpos de neurônios. Dentro está a chamada substância branca. Trata-se de uma rede de axônios, feito fios encapados. O revestimento é a mielina, componente químico que lhe confere a cor clara.
Neurônios e axônios formam conexões: não chegam propriamente a se tocar, mas se aproximam tanto, que basta um neurônio liberar a substância química chamada neurotransmissor para que outro neurônio a capte e se estabeleça a comunicação entre eles. Calcula-se que no cérebro humano existam 100 trilhões dessas conexões. Chamadas sinapses. Um pensamento, por mais simples que seja, ativa centenas de sinapses. A capacidade de memorizar que todas as sinapses dão ao homem é incrível: aproximadamente 1014 bits (unidades de informação), ou o número 1 seguido de catorze zeros. Esse oceano de bits daria para escrever 20 bilhões de livros. Difícil é imaginar que cada um de nós carrega essa megabiblioteca na cabeça.
Já se nasce sabendo. É o que os cientistas chamam de memória biológica do cérebro, herdada geneticamente, que tem a ver com o instinto de sobrevivência de cada indivíduo de uma espécie. Assim, não se precisa ensinar o recém-nascido a mamar. O bebê também já nasce com todo o potencial para arquivar o que for aprendendo pela vida afora e formar, dessa maneira, a memória cerebral— que é, aliás, 10 mil vezes mais ampla que a memória dos genes das células do organismo.
Recentemente, cientistas italianos levantaram a hipótese de que a potencialidade da memória cerebral é hereditária. Eles fizeram uma experiência muito sugestiva: cruzaram ratos de laboratório dotados de boa capacidade de memorização; verificaram depois que a geração seguinte de ratinhos se distinguia pela facilidade com que aprendia a buscar comida num labirinto, em comparação com filhotes de outros ratos. Mas nada prova por enquanto que filhos de pais com boa memória também nasçam com boa memória.
Mas onde será que a memória se localiza? Todas as partes do cérebro são capazes de armazenar memórias; mas isso não impede que existam vagas demarcadas especialmente para certos tipos de memória. O grande desacordo entre os cientistas diz respeito a outra questão: os mecanismos que o cérebro usa para gravar os eventos. São duas correntes: de um lado a dos que acham que são as sinapses (conexões entre os neurônios) as responsáveis pela memorização, de outro, a dos que acreditam que a chave da memória está na síntese de proteínas feita pelo cérebro. “A explicação mais lógica é que a cada evento o cérebro ou forma novas sinapses ou amplia a área de contato nas sinapses já existentes”, raciocina o neurologista Paulo Bertolucci, da Escola Paulista de Medicina.
Ele dá um exemplo: “Quando me lembro de que fui a um baile, ativo várias sinapses, uma para cada detalhe: o lugar, a cor do vestido da moça com quem dancei, as pessoas presentes etc. Com o passar do tempo, a não ser que esteja sempre me recordando da festa e mantendo as sinapses em atividade, como correntes elétricas, elas irão se desfazendo. Eis por que a gente se lembra minuciosamente do que aconteceu no dia anterior e depois os detalhes vão fugindo. Na verdade, são as sinapses que estão se desativando aos poucos”.
“A idéia de novas sinapses é absurda”, contesta o neurologista João Radvany, do Hospital Albert Einstein de São Paulo, ferrenho partidário da síntese de proteínas. “As pessoas não formam sinapses após a adolescência.” A teoria da síntese de proteínas sugere que a memória é transmissível. Na década de 60, cientistas americanos ensinaram um rato a ter medo do escuro: quando ele entrava num quarto sem luz, onde sabia estar a comida, levava um choque elétrico. Depois de um certo número de descargas, o animal associou a dor à ausência de luz.
Os cientistas — por incrível que pareça—liquefizeram então o cérebro do ratinho condicionado a temer a treva e injetaram o líquido obtido em outro rato. Resultado: este passou a manifestar sintomas de pânico do escuro. O problema é que nunca se conseguiu repetir essa experiência. “Todos sabem que se inibirmos a produção de proteínas pelo cérebro, um animal de laboratório perderá a capacidade de aprender”, observa Radvany. Os neurologistas — seja qual for sua opinião sobre o papel de sinapses e proteínas—dividem a memória em três tipos.
A imediata é aquela que entra em ação quando se acha um número na lista telefônica: ela é eterna enquanto dura; o problema é que dura pouquíssimo. Se, por exemplo, a pessoa que acabou de localizar o número desejado no catálogo ouvir um ruído intenso antes de começar a discar, é bem possível que o número Ihe fuja, porque a memória imediata, de tão frágil, não resiste a interferências. Elas interrompem a sinapse ou a síntese (conforme a teoria).
O segundo tipo, a memória evocativa, menos sujeita a esses percalços, dura de algumas horas a alguns dias. Frustrada pelo primeiro esquecimento, a pessoa volta à lista, dessa vez com a firme intenção de decorar o número. A concentração necessária — mesmo quando inconsciente — transporta a informação da memória imediata para a evocativa. Enfim existe a memória de longo prazo, que pode durar a vida inteira. Se houver um motivo muito forte, o número daquele telefone não sumirá jamais.
Normalmente, o esquecimento é um recurso do cérebro para não ficar entulhado de informações inúteis. Trata- se, portanto, de uma limpeza de arquivos. Ocorre que nem sempre —alguns diriam, raramente—os critérios dessa seleção do que deve ser guardado passam pelo racional. Se já não bastassem as teorias de Freud e a prática da psicanálise, a experiência pessoal de cada um demonstra que aquilo que mexe com as emoções fica guardado no cérebro por mais tempo e com uma riqueza maior de detalhes. Ficar guardado não quer dizer necessariamente que se consiga evocar certas memórias com facilidade. Ao contrário: lembranças associadas a emoções básicas ou poderosas demais tendem a permanecer bloqueadas.
A terapia analítica busca desbloquear tais fatos, que seriam a causa oculta de neuroses e outros distúrbios de personalidade. Os neurologistas, de seu lado, já descobriram que os sentimentos influem na formação de neurotransmissores. “Parece que nada melhor do que uma novidade para ajudar a memorizar algo”, revela Esper Cavalheiro, do Laboratório de Neurologia Experimental da Escola Paulista de Medicina. Trabalhos com animais têm demonstrado que o cérebro reage à novidade liberando a substância endorfina, um eficiente fixador de memórias.
“Algo semelhante deve acontecer aos seres humanos”, imagina Cavalheiro. Se isso é verdade, após estudar para uma prova, um aluno bem que poderia fazer em seguida algo novo, como andar de roda- gigante, caso nunca tenha feito isso. Provavelmente, Ihe será mais fácil recordar a matéria na hora do exame. Com animais, pelo menos, essas coisas funcionam.
Emoções demais, porém, podem ser prejudiciais. Quem será que nunca sentiu um “branco” num momento de nervoso? A razão é conhecida: o estresse libera grandes quantidades de hormônios, principalmente adrenalina, que atingem o cérebro e interferem na capacidade de evocar informações.
Várias pesquisas têm demonstrado que as substâncias do estresse desempenham papel importante na memorização: animais em que se injetaram aquelas substâncias em pouquíssima quantidade tinham dificuldade em memorizar; com doses maiores; alcançavam- o auge da capacidade de memorização; com grandes quantidades, porém, os animais esqueciam tudo o que haviam aprendido—exatamente como uma pessoa estressada. Tudo indica que, quando alguém se concentra para memorizar algo, está produzindo substâncias do estresse nas quantidades intermediárias, como as cobaias de boa memória.
Um dos trabalhos mais interessantes sobre a produção dos neurotransmissores que influenciam a memória foi realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pelo neurologista Ivan Izquierdo, que estuda há vinte anos os processos da memória. Izquierdo provou que existe o que chama de “dependência de estado”:aquilo que um animal aprende sob estresse só será recordado em outra situação semelhante. “Talvez seja um mecanismo instintivo”. supõe o professor, “pois a comparação de situações parecidas pode ajudar o animal a se sair-melhor.”
Segundo especialistas, os maiores inimigos da memória são os acidentes automobilísticos—a principal causa de amnésia. “mais do que qualquer doença do sistema nervoso”, garante o neurocirurgião Reynaldo Brandt, do Hospital Albert Eisntein Mas ele faz questão de deixar claro: “Aquela amnésia do cinema e de novelas de televisão, na qual a pessoa pergunta “quem sou eu?” é pura ficção. De fato, como a memória se espalha por todo o cérebro, não existe acidente que possa apagar todo o arquivo sem ser fatal. A pessoa pode se esquecer do momento do acidente, pode perder a capacidade de recordar determinadas coisas. Mas jamais se esquecerá de tudo, vagando pelas ruas.
A idade está deixando de ser associada à perda de memória, embora essa seja uma idéia tão recente que muitos especialistas ainda argumentem que, com o passar dos anos, diminui o número de neurônios. “Talvez os idosos apenas sejam mais lentos para formar sinapses”; especula o neurologista Paulo Bertolucci, de São Paulo. “A mocinha, por exemplo, precisa repetir o nome do novo namorado à avó, até que ela o guarde.” O fato de pessoas idosas se lembrarem mais do passado do que de episódios recentes também tem sido explicado como uma questão de prática: a vida inteira elas ficaram com aquelas lembranças, que por isso acabam vindo à tona com mais facilidade. “Manter a memória acesa depende de usá-la sempre, o que significa atividade- mental e interesse pelo mundo”, diz: Bertolucci. Nesse sentido, recordar não é só viver, —é viver bem.